segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

(03) Realidade-viva

  Richard, desculpe se essa carta demorou a ser escrita. Sei que prometi que não demoraria, mas muitas coisas aconteceram. Tudo tem mudado por aqui, dentro e fora de mim. Não consigo entender Rich, e acho que jamais entenderei o que as pessoas chamam de “a dinâmica da vida”.

  Tenho trabalhado bastante na livraria, pra falar a verdade, quase não vou mais a aula. Agora, mais do que nunca, agradeço ao Sr. Toubach pelo trabalho, pois o estado de saúde da mamãe piorou muito, e o gerente da fábrica a demitiu pra evitar gastos com a saúde dela. Nossa única fonte financeira agora é meu trabalho. Com ele, amadureci muito.

  As coisas por aqui andam de assustar Richard. Às vezes, sinto que não sou uma jovem... Talvez por não me comportar, vestir, pensar e falar como tal. O ser humano me espanta, irmão. Já nascemos com um fim: impedir que o ciclo se rompa. O ciclo de viver uma vida inteira ‘pagando’ à sociedade pelo simples fato de ter nascido. Já está tudo pronto. A mulher é frágil, o homem, rude. Li sobre isso esses dias... Falava sobre o conceito da “mulher-boneca” e do “homem-de-ferro”, encantei-me como o modo como a autora consegue te fazer ver que o ciclo existe, mas o que o alimenta é a nossa omissão, nossa apatia social.

  Tenho tentado cuidar da mamãe, mas não podemos pagar um médico. Seria quase todo o meu salário para apenas uma consulta. Tem dias que ela nem sequer come... E quando saio, sei que ela chora e reza a Deus pra que morra logo. Não sei mais por onde anda a mulher que era meu exemplo. Talvez ela esteja aqui dentro, em algum lugar bonito.

  O trabalho aqui na livraria é bom. De vez em quando meus amigos vem aqui, então conversamos um pouco sobre a vida e tomamos um café, depois retorno pra solidão do balcão escuro e dos livros. É estranho ficar sozinha aqui o dia quase todo. Livrarias não são lugares tão visitados quanto deveriam, mas de vez em quando tenho umas surpresas. Sabe quem veio aqui há alguns dias? Aquele de quem te falei, o Hill, o saxofonista da banda. Ele veio me perguntar porque não tenho mais ido aos ensaios, e se ofereceu pra ensaiar comigo aqui na livraria mesmo de vez em quando. Ele não é tão fechado quando parece, e eu nem sequer me lembrava que fosse tão bonito. Mas não vem ao caso. O Thomas, digo, o Tom ficou com uma cara meio emburrada quando contei a eles. Mas nem ligo pra isso.

  Richard, esses dias fui à Divisão para saber notícias suas e do papai, e eles disseram que os nomes de vocês não estavam na lista de filiados, isso até me preocupou um pouco. Mas deve ter sido apenas um desleixo deles. O sargento com quem falei não me foi muito receptivo. Mas eu o entendo, talvez seja essa a função dele. Amedrontar pessoas pra “manter a ordem”.

  Queria ter notícias de você também Rich. Porquê você nunca responde minhas cartas? Queria saber como estão você e o papai, e quero saber sobre sua vida aí, sobre o que tem feito, etc. Sinto saudade de vocês irmão. Esses dias tive um pesadelo terrível com vocês. Sonhei que eram seqüestrados e torturados em troca de informações sobre a Divisão, acordei com muito medo, mas não contei nada a mamãe.

  Por favor Richard, me responda assim que puder. Pra que eu possa ficar mais tranqüila, ok?

 

Fico por aqui. Espero escrever logo a ti novamente.

Tentarei manter vocês informados sobre a doença de mamãe.

Leve a sério o que te falei, certo?

Da um grande abraço no papai pra mim, e um pra você também.

Qualquer coisa, escreva pela Divisão.

 

Que Deus os abençoe.

 

Obs: junto com essa carta vai uma medalhinha que comprei pra você. Ela é estampada com a figura de um anjo segurando duas espadas. Não sei quem é esse anjo, mas me lembra muito você.

 

Obs2: Não perca isso!

 

Obs3: Eu amo vocês.

 

 

Cuida do papai Richard.

Um beijo de sua irmã,

                           Joanna.



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Link do Capítulo 02: http://loucurasredigidas.blogspot.com/2008/12/02-tempo-passado.html

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

(02) Tempo-passado

Richard, há quanto tempo não nos vemos, irmão. Acabo de ler aquela cartinha de 6 anos atrás. Hoje é meu aniversário... Estou fazendo 16 anos. Como vão as coisas por aí? Muitas coisas aconteceram por aqui. Sabia que já fazem 3 anos, 7 meses e 14 dias que a gente não se vê? Pois é. Vou listar alguns fatos importantes daqui pra você:

 

- Minha professora faleceu em decorrência de uma parada cardíaca. Assim que a sirene ecoou pelos corredores, ela foi andando e depois de alguns poucos passos tombou, vítima de um ataque fulminante. Seu velório foi bastante cheio, era bastante querida por todos.

 

- Nunca mais nevou como naquele ano... Apesar de que mês passado a mamãe ficou acamada, com um quadro moderado de pneumonia. Ela está muito frágil desde o acidente do papai, vez em quando ela fica num canto chorando, enquanto se faz de forte na minha frente.

 

- Minha vida mudou demais Richard. Meu corpo está estranho, me sinto inchada, disforme. Além de tudo, me incomoda muito o período menstrual, me sinto irritada, nervosa. Vejo que meu corpo está ficando parecido com o da mamãe, engordei muito, em pouco tempo. O 1º ano colegial é estranho Rich, as pessoas são ainda mais frias e nada é permitido. Às vezes, me sinto envergonhada por minhas roupas serem simples. O preço das coisas aumentaram muito. O trabalho da mamãe tem dado apenas para comprar comida. Começarei a trabalhar no próximo verão, na livraria do Sr. Toubach, lembra-se dela? Fica algumas ruas depois daqui.

 

- Consegui alguns amigos legais. A mamãe não me deixa sair com eles à noite, diz que é arriscado andar à noite por aqui. Mas eles são bacanas, de vez em quando tomamos um sorvete juntos. Somos 5... Eu, o Willian, o Tom, a Nancy e a Sarah. Confesso que o Tom me vê com bons olhos, mas a mamãe não aprova. Diz que ele não é um garoto sério, e que quer apenas se aproveitar de mim, mas não acho que seja isso.

 

- Ah, a Sarah é aquela mesmo. Nós nos entendemos, e acabamos virando muito amigas. A família dela foi muito afetada pela crise financeira, e parte dos negócios entraram por água abaixo. Depois disso ela descobriu que o mais importante da vida está no que somos, e não no que temos. Nos encontramos na rua, certo dia, e ela me pediu desculpas. Acabamos por conversar e agora estudamos juntas novamente.

 

- 16 anos não é fácil Richard, agora toco trompete na banda da escola e trabalho na biblioteca. Lá é meio parado, mas é legal. Um dos meninos da banda, o Hill (não sei o nome dele, mas o chamam de Hill), veio pra cá depois da crise. Ele morava no norte dos EUA, em uma cidade pequena que foi transformada em zona de treinamento. Depois disso, seu pai resolveu vir pra cá. A história dele é muito triste, ele perdeu a mãe e dois irmãos em um acidente de trem. Ele não fala muito, talvez por causa disso. É o melhor saxofonista da banda, mas está sempre sério. No intervalo, ele fica sentado sozinho, em algum canto... Dizem que ele fica o tempo todo relembrando o acidente, do qual saiu sem marca alguma.

 

Tenho muitas novidades pra contar ainda Richard, mas por enquanto fico por aqui.

Não demorarei a escrever-te novamente.

Saudades de você Rich, e dá um beijo no papai pra mim.

Como está a perna dele, não deixe-o fazer muito esforço, ok?

Já aprendeu a consertar as máquinas?

Você logo poderá substituir o papai.

 

Sinto saudade de você.

Espero te ver logo.

 

Um beijo,

      Joanna.



{OBS: pra quem não leu o (01), aí vai o link: http://loucurasredigidas.blogspot.com/2008_11_01_archive.html }

Momentos...

Momentos...
"Mas aqueles anjos agora já se foram, depois que eu cresci"